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A RELOCALIZAÇÃO E A EMERGÊNCIA DA NAÇÃO


Por René António Cordeiro - Membro da Ordem dos Economistas nº 56


QUANDO AS ILUSÕES IMPERIAIS ASPIRAM A SE TORNAREM RELIGIÕES


1.Os contornos da fé ocidental: A Democracia Ocidental Liberal


Recordemos as cruzadas, particularmente a 1ª: o Papa Urbano II observava as contínuas guerras entre os grandes da terra, a violação dos lugares santos e a invasão pelos Turcos de províncias interiores da Roménia, conquistando-as aos cristãos. Como nos conta Foucher de Chartres, cronista da sua experiência no chamamento para a cruzada e nela participante “…Foi assim que Urbano, homem prudente e vulnerável ponderou um projecto que asseguraria a prosperidade do Universo. Fez, com efeito, renascer a paz e restabelecer os direitos da Igreja no seu antigo esplendor, não poupando qualquer esforço para que os pagãos fossem corajosamente e claramente expulsos das terras dos cristãos”.


Associo esta descrição à situação que vivemos há muitos anos: pela causalidade – nós (os nossos valores: democracias ocidentais liberais) e eles (os seus valores: autocracias); e pela semelhança de circunstâncias, hoje – também objecto de expressões cuja veemência aumenta com casos concretos (actualmente com a condenável invasão da Ucrânia pela Rússia e a sua previsível derrota por razões económicas). Ontem, como hoje, tudo se resume a vencer o infiel! Daí o subtítulo deste escrito: tem que ver com o fervor, quase veneração, que observamos no discurso público na defesa dos valores da democracia ocidental liberal. Concretamente, nos EUA e nos países da Europa ocidental. Mas quero esclarecer que, comungando eu daqueles valores, tenho consciência da dificuldade em abordar o tema sem ser mal julgado por aqueles que o fazem em modo automático que, como define Daniel Kahneman, é a forma de aplicação da “inteligência imediata” que, por ser instintivamente accionada, nos conduz a apreciações prontas, livrando-nos do esforço e da disciplina da reflexão. É o efeito de aura a funcionar!


E também tenho consciência de que, sendo o que escrevo uma síntese, ela decorre de uma análise histórica que pode ser qualificada como tendo para ela seleccionado os factos que concorrem para os argumentos expendidos, factos que, ainda, porque distantes no tempo e na geografia, podem ser objecto de diferente interpretação resultante das mudanças que sempre ocorrem. Mas porque proponho à nossa reflexão um caminho – é a razão do título – , diferente daquele que me parece ser seguido, correndo o risco inerente a quem expõe uma opinião, entendo contribuir para a perspectivação do assunto por forma tão objectiva quanto possível, procurando suportar-me em factos que têm, creio, clara demonstração na nossa vida corrente e assim motivar e alimentar a grande e inevitável discussão acerca da nova arquitectura política e geográfica do mundo, que já está a decorrer e na qual devemos participar.


Porque, como português, tenho obrigação de procurar ver para além dos declarados argumentos de explicação da condenável invasão da Ucrânia pela Rússia e, ao fazê-lo, deparo-me com uma tensa influência da cultura dos EUA sobre as sociedades ocidentais (e algumas orientais) e uma lassidão destas, particularmente da portuguesa, em acolhê-la. Com claros efeitos, que considero negativos, na nossa cultura e autonomia. Com tristeza, recordo o que um amigo me contava há dias sobre o que sua mãe lhe dizia: nós, portugueses, não fomos colonos, somos colonizáveis.


Como em (quase) todas as religiões, há sempre alguma que se considera com mais méritos. Claro que, como em todas as religiões, há quem pratique, com zelo ou com excesso, e quem diga que professa. Como em (quase) todas as religiões, as democracias ocidentais liberais entendem que devem vergar os regimes não pertencentes ao grupo à sua verdade. Ao que considera a única verdade. É o seu pendor imperialista.


O problema é que as religiões perduram, mau grado as evoluções e tentativas do seu desaparecimento – parece que a natureza humana, por uma razão ou por outra, a ela recorre sempre – às claras, ou recatadamente. Enquanto os impérios perecem sempre, diz-nos a História dos tempos. Porque têm de conquistar território, ou populações – por coerção: via formal (conquista pela força), ou por persuasão: via informal (conquista pela cultura – música, língua –, pelo comércio, pela defesa). Esta última via, que se observa crescentemente, tem os seus arautos, os seus ‘bispos’ – na UE e em países a esta não pertencendo – e o seu ‘papa’ – os EUA, o império actualmente mais claramente observado. Este, herdeiro do império britânico, como ele com evidências tentaculares geográficas e de mentalidade em diferentes áreas – comercial, militar, financeira, cultural – que, naturalmente, originam adesões e dependências tributárias e, naturalmente também, resistências e independências. Resistências ao império norte-americano tão naturais como foi a resistência francesa ao império britânico. (Sigo aquele conceito de conquista por me parecer mais abrangente e actual do que o de colonização de Leroy-Beaulieau e Hancock, particularmente aplicável no séc. XIX, que a caracterizavam em três planos: estabelecimento, comércio e concessão).


As aspirações imperialistas, inspiradoras de movimentos de ocupação, têm, na História milenar, exemplos conhecidos. Farão parte da natureza humana. Se as aspirações são nossas, são boas. Se são dos outros, são más. Sempre com argumentos de fé! Todavia, as outras “religiões” – sem ‘papa’ tão claramente percepcionado, por menos promovido – têm a sua forma e, acreditam, o seu dever, de se afirmarem.


2.Os sonhos e os modos imperialistas: O Imperialismo Unipolar da Doutrina Monroe


Mas focalizemo-nos apenas nos exemplos ideológicos que me parecem mais importantes nos dois últimos séculos para fundamentar o que argumento: a “internacional socialista”, nas suas versões democrática e autocrática, e a “liberal ocidental”.


A primeira, na versão autocrática, veio perdendo relevância na sua expressão política, enquanto a segunda foi nela ocupando lugar privilegiando, nessa mesma expressão, a predominância das liberalidades dos costumes. Com fortes identidades com aquela, na sua versão democrática, no âmbito das liberdades individuais e civis ou sociais, pelas necessidades que o conceito, e a prática, de democracia liberal impõem. Creio ser esta a causa do que se costuma referir como “perda de valores” (referências) – porque influencia a educação e a inter-relação das pessoas pela perda de referências e pelo aparecimento de “novas” caracterizadas pela volatilidade que a liberalidade possibilita. Atentemos aos factos.


Atribui-se ao escritor John L. Sullivan, em 1839, uma declaração que ficou célebre: “os EUA tinham uma sagrada missão para com as nações do mundo”: eram, também, o povo escolhido.


A doutrina Monroe, proclamada em 1823, tornando-se doutrina de facto no final do séc. XIX e assumida como corolário por Theodore Roosevelt em 1904, afirmou o direito de os EUA agirem unilateralmente em qualquer lugar do Hemisfério Ocidental desde que entendessem que a defesa dos seus interesses – fossem a vida, a liberdade, a busca da propriedade ou a colecta de dívida – carecesse de intervenção militar.


Sieyès, em 1789, definiu nação como um “corpo de associados vivendo sob leis comuns e representados pela mesma assembleia legislativa”. Como a definição evidencia, a língua, as tradições, o território não são importantes. A voragem imperialista francesa de Napoleão com Carlos Magno por émulo, na sequência da já iniciada pelo Directório, pôde aproveitar da definição. Mas a UE melhor ainda, seguindo o impulso de Jean Monnet – espécie de conselheiro informal de Franklin Roosevelt durante parte da II grande guerra – para quem a CECA de Schumann era insuficiente, sendo também insuficiente a CEE (para mim, suficiente e desejável). Acredito ser neste processo que a influência ‘papal’ dos EUA se consolidou e a nomeação dos ‘bispos’ ocidentais se iniciou, com base na doutrina Truman na sequência do termo daquela guerra: com o Plano Marshall, constituído por empréstimos como instrumento para abrir as fronteiras dos países europeus aos produtos norte-americanos e conter a influência da União Soviética, afastando-a geograficamente mais dos EUA pelo lado ocidental. Assim se foi implantando o ditador das democracias ocidentais e por estas promovido: o consumo – com os produtos fabricados nos países de mão-de-obra (mais) barata – e fomentando a dívida para o sustentar, satisfazendo e alimentando artificialmente a natural propensão humana ao consumo.


Como conseguir a convivência pacífica (possível) das religiões, leia-se dos impérios?


3.O caminho da adequação: O renascimento das Nações


Voltando à invasão da Ucrânia pela Rússia. Haverá, pelo que se sabe, objectivos territoriais russos. Mas há, na linha do que argumento, algo porventura mais importante: a reacção, a resistência de uma parte do mundo à invasão, à influência tentacular das democracias ocidentais dirigidas pelos EUA: toda a acção – desde a deslocalização de operações de produção do Ocidente para o Leste (para satisfazer o consumo ocidental: a abordagem comercial), ao domínio da língua inglesa nas arenas comercial, politica e social, passando pela expansão do instrumento militar do Ocidente – a Nato, dirigida pelos EUA e tendo estes como principal financiador – produz necessariamente reacção. Como produziu reacção a tentativa internacionalista da comunista União Soviética. E a dinâmica do movimento, não esqueçamos, consiste sequencialmente em “acção/reacção/adaptação/exaustão/morte”. Sublinho o momento do movimento a que é necessário, por razões de sobrevivência, chegar.


É este momento que me conduz a defender que a melhor solução para a realizar é o regresso à “paróquia”: regresso à importância da nação, secundarizando, desistindo da pretensão ambição de domínio imperial – domínio dos outros por nós, sempre com atractivos argumentos de vendedor – que conhecemos pela tendência de domínio mundial através do que designamos por “globalização económica” que tem na sua génese, como sabemos, a iniciativa dos EUA pela via financeira conduzindo-nos à mundialização da moeda referência: o dólar norte-americano.


Assim – respeitando-se as “paróquias”, com os seus interesses, com as suas convicções, com as suas limitações, permitindo-se mais economia com menos dívida, permitindo-se as “paróquias” a avaliação do seu interesse e consequentes opções e mais influência própria na sua gestão financeira e menos “política”, permitindo-se as “paróquias” a autonomia (económica e financeira – que exige apenas e principalmente esforço próprio, trabalho e menos preguiçosa dependência de terceiros) necessária para ir fazendo escolhas no seu interesse de longo prazo, sempre com algum grau de insatisfação, particularmente no presente – a adaptação seria mais viável. Nunca perfeita, mas de configuração com maior probabilidade de sucesso.


Porque creio que não devemos aceitar que o poder da ilusão de alguns sustente a esperança de ambições globais (presentes ou futuras) substituindo o poder da cultura, da língua, das tradições que por si evoluirão – assim assegurando-se o interesse da nossa “paróquia” sobre o interesse das outras “paróquias”, necessariamente concorrentes.


Certamente, não é fácil: porque, no âmbito politico-cultural as dissensões encontram sempre terreno para afirmarem as suas razões, normalmente importadas – porque as das próprias “paróquias” são…paroquiais! Portanto, que orientações valorativas deverão conduzir as razões próprias? Que influências devemos permitir-nos? Quais devemos rejeitar? Não havendo para o ser humano soluções perfeitas, creio que a que apresenta mais probabilidades de pacificação nas inter-relações – sendo hoje poucas as situações de disputa de fronteiras por resolver – é a solução da “paróquia”, leia-se Nação que, para alguns, constituirá um recuo no tempo; mas, para mim, a manutenção e a alimentação da aspiração imperial é que é recuo temporal, melhor dizendo, manutenção do passado. Isto, porque acredito ser essa solução a que promove maior probabilidade de convivência concorrencial pacífica. Porque, a natureza humana não é alterável, mas é facilmente perturbável.


É assim que creio ser esta solução de adaptação preferível à existência de um só império formal, por minimização de resistências viáveis. Caso contrário, será a concretização do percurso para um governo mundial por alguns desejado, sem explicarem (também não lhes perguntam) as suas consequências. O nosso planeta tem dois pólos geográficos. Se a sociedade tiver um só pólo, não me parece ser situação social e politicamente saudável e, concorrencialmente, será desastroso para as nações que não poderão deixar de ser (continuar a ser) tributárias. E, politicamente, a existência condescendente de dois pólos imperiais não me parece conduzir à solução de adaptação que acredito ser mais viável através da via da nação. Recordo, a propósito, a afirmação de Theodore Roosevelt, em 1909, a propósito da então sua colónia Filipinas, que traduzo: “Acredito falar com rigor histórico e imparcialidade quando digo que o tratamento americano para com o povo filipino, combinando um propósito ético desinteressado e um sólido senso comum, definem um novo longo passo em frente prévio a todos os passos que até agora foram dados ao longo do percurso de ajuizado e adequado tratamento das raças fracas pelas fortes” (A. G. Hopkins, American Empire, Princeton University Press).


É necessário estarmos atentos ao efeito de aura! Mas não estamos. E devíamos estar, no interesse da nossa “paróquia”. Porque, como canta Charles Dumont em “Je cherche l’or du temps”: Notre société est ainsi construit, l’argent fait vivre, tout s´achète, tout se vend, pelo que o comprador deve estar muito atento à argumentação do vendedor. Porque 1984 tem uma versão contemporânea e democrática: Le Réveil, de Laurent Gounelle (Calmann Levy, 2022).



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