Impostos diferidos – o que são
- DRCA
- 5 de ago. de 2020
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Por Pedro Almeida Jorge - Membro da Ordem dos Economistas nº 15846
Um dos assuntos mais “quentes” dos últimos anos, no que respeita às contas das empresas, em especial do setor bancário, é o dos muito falados impostos diferidos. Todavia, sendo este um tema de extrema complexidade nos seus detalhes, exponenciada em grande medida pelo também já muito discutido “Regime Especial aplicável aos Ativos por Impostos Diferidos (REAID)”, aprovado em 2014, muito do que se tem escrito sobre esta temática não tem, infelizmente, revelado o rigor que seria desejável.
O meu percurso profissional levou-me a trabalhar de perto com este assunto durante alguns anos. Ainda que não me arrogue da pretensão de ser um catedrático nesta matéria, sendo o meu conhecimento essencialmente de cariz prático, acredito que não serei levado a mal se, depois de tanta gente já tanta coisa ter dito a este respeito, me debruçar também eu um pouco sobre algumas das suas vertentes que me parecem merecer nota hoje em dia.
Assim sendo, procurarei neste e num seguinte artigos apresentar um par de notas, em jeito de esclarecimento, sobre alguns dos que me parecem os erros e confusões mais comumente cometidos a este respeito, tencionando,num terceiro artigo, introduzir uma discussão de cariz mais “fundamental”, sobre um detalhe que, pelo menos a meu ver, está na base de algumas das controvérsias a que assistimos ao nível da contabilização dos impostos diferidos.
A abordagem será essencialmente prática, evitando um excessivo foco na literalidade das normas contabilísticas e fiscais aplicáveis, o que inevitavelmente levaria estes artigos a tornarem-se demasiado extensos e “académicos”. Como é óbvio, muitos detalhes e pormenores terão de ser deixados de parte: a presente exposição – em especial os dois primeiros artigos - deverá ser encarada como um esclarecimento de alguns “mitos” várias vezes veiculados e não como um guia suficientemente abrangente sobre a natureza e registo dos impostos diferidos. Para um tratamento detalhado da “Problemática do Reconhecimento e Contabilização dos Impostos Diferidos”, vide a obra, assim intitulada, da autoria de Carlos Cunha e Lúcia Rodrigues.
O que são, então, os impostos diferidos?
Os ativos e passivos por impostos diferidos são registos contabilísticos que visam essencialmente refletir, no balanço atual das empresas, os impactos fiscais futuros, i.e. poupanças ou encargos de imposto que se verificarão em exercícios seguintes, imputáveis a eventos que já tenham ocorrido. Deste modo, representam uma aplicação do chamado “regime contabilístico do acréscimo” à contabilização dos impostos sobre o rendimento.
O registo de ativos ou passivos por impostos diferidos é principalmente motivado por duas situações: i) diferenças temporárias entre a base fiscal e a base contabilística de ativos ou passivos; e ii) prejuízos fiscais que poderão, expectavelmente, ser deduzidos (aos encargos de IRC) em exercícios futuros.
Em relação aos segundos – os impostos diferidos por prejuízos fiscais reportáveis - não me alongarei em demasia. Noto apenas que costumam estar sujeitos a uma especial avaliação da respetiva recuperabilidade num horizonte temporal definido, mediante a sua comparação com um plano de rentabilidade futura da empresa para esse período – isto porque, na nossa lei fiscal, a possibilidade de dedução de prejuízos fiscais caduca após determinado número de exercícios (artigo52.º do Código do IRC), pelo que a empresa só contabilizará um ativo por imposto diferido se for expectável que os seus lucros nesse horizonte temporal sejam suficientes para a dedução total dos prejuízos em reporte. Caso contrário, apenas o valor (em imposto a pagar ou receber) da dedução expectável deverá ser registado como ativo.
Já no que respeita às diferenças temporárias entre a base fiscal e a base contabilística, as mesmas são em geral motivadas por um desfasamento temporal entre o impacto contabilístico e o impacto fiscal de certos “eventos”, e.g. amortizações, imparidades, benefícios de colaboradores, provisões para encargos diversos, etc.
Consideremos o exemplo das imparidades do crédito no setor bancário, que representam o tema que mais controvérsia tem gerado, principalmente pela magnitude dos seus montantes. Antes da entrada em vigor da muito esperada Lei n.º 98/2019, de 4 de setembro, a generalidade das imparidades registadas pelas instituições de crédito só era considerada custo do exercício, para efeitos fiscais, até determinado limite. Esse limite, em termos práticos, correspondia ao valor das provisões regulamentares instruídas pelo Aviso n.º 3/95 do Banco de Portugal. Para além disso, as imparidades registadas em créditos cujo valor estivesse garantido por direitos reais sobre bens imóveis (os chamados “créditos hipotecários”) não eram, de todo, consideradas custo fiscal do exercício.
Quando é que, então, esses montantes seriam abatidos ao imposto a pagar? Quando, no futuro, i) o incumprimento do respetivo crédito se verificasse conclusivamente; ou ii) os limites previstos para efeitos fiscais eventualmente aumentassem; ou iii) tais créditos fossem vendidos pelo banco (verificando-se a perda na sua esfera).
Assim, traduzindo num exemplo numérico, se um banco decidisse, em determinado exercício, registar uma imparidade de 20 u.m. para um crédito cujo limite fiscal previsto fosse de apenas 10 u.m., o seu resultado contabilístico revelaria um custo de 20 u.m., mas o seu resultado fiscal apenas consideraria uma dedução de 10 u.m. – ou seja, o banco pagaria, nesse exercício, um imposto superior ao que seria de esperar se um leitor das suas demonstrações financeiras apenas aplicasse a taxa legal de imposto ao resultado antes de impostos. Por outro lado, quando, no futuro, tal incumprimento se viesse a verificar conclusivamente, o resultado contabilístico não seria afetado (pois já o foi no ano de constituição da imparidade), ao passo que o resultado fiscal teria o impacto dos 10 u.m. remanescentes – ou seja, seria pago um imposto inferior ao esperado.
Por forma a refletir, no primeiro ano, esta diferença meramente temporária nas suas contas,o banco regista no seu balanço um ativo no valor de [10 u.m. vezes a taxa de imposto] – o chamado “ativo por imposto diferido”– que representa a poupança fiscal futura que o banco estima obter pelo facto de, neste ano, não ter podido considerar como custo fiscal todo o montante de imparidade registado (20 u.m.). Desta forma, o imposto “excessivo” que vai pagar este ano é compensado nas contas pela poupança futura correspondente – ficando assim restabelecida a correspondência entre a taxa legal de imposto e a taxa efetiva aplicável ao banco no exercício, caso mais nenhuma outra diferença entre a contabilidade e a fiscalidade tenha ocorrido.Outras diferenças que poderão afetar essa “correspondência ideal” são, por exemplo, as chamadas “diferenças permanentes”, em que um determinado custo contabilístico não é aceite para efeitos fiscais nem no presente exercício nem nos exercícios futuros (e.g.multas e coimas); ou as eventuais diferenças nas taxas de imposto consideradas, que podem surgir quando, por exemplo, em determinado exercício, a taxa nominal aplicável à empresa é diferente da taxa que a empresa considera, por razões diversas, ser adequado aplicar no registo dos seus ativos e passivos por impostos diferidos.
Por fim, em jeito de curiosidade, importa notar que a principal (e mais aguardada) alteração introduzida pela mencionada Lei n.º 98/2019, de 4 de setembro, foi a modificação das regras de aceitação fiscal das perdas por imparidade em créditos do setor bancário, de forma a que o seu impacto fiscal passe a coincidir, regra geral, com o seu registo contabilístico. Tal alteração aplicar-se-á às imparidades registadas a partir do exercício em que o banco em causa comece a aplicar o novo regime (está previsto um período de transição opcional).
Deste modo, é possível que deixem de ser gerados novos impostos diferidos ao nível das imparidades do crédito, a menos que a aceitação de tais imparidades acabe por levar o banco para prejuízo fiscal – o qual,como vimos, poderia então ser objeto de ativo por imposto diferido.
Em termos de “dismistificação”, o que importa reter relativamente a esta recente lei é que a modificação por si introduzida foi levada a cabo sem que se mencionasse especificamente, a este respeito, a temática dos impostos diferidos: ou seja, as implicações ao nível do registo de impostos diferidos são meramente uma consequência contabilística da alteração do regime fiscal de aceitação das perdas por imparidade – esse regime fiscal em momento algum os menciona.A única exceção trata-se do respeitante ao famoso REAID que acima mencionámos, mas disso trataremos no próximo artigo.
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